18.12.19

E que venha o Liverpool

Este fato singelo dificilmente irá aparecer em alguma resenha dos "melhores momentos" do jogo Monterrey vs Liverpool, mas se o árbitro do jogo tivesse feito corretamente seu trabalho, é praticamente certo que teria havido uma prorrogação. E, nessa prorrogação, o Liverpool seria obrigado a jogar com um homem a menos.

Levando-se em conta que o Monterrey estava jogando muito melhor do que no jogo de estréia e mostrando que os mexicanos sabem (há muito tempo) o que é jogar futebol, isso teria sido um problema enorme para o time inglês.

Por sorte, o árbitro indicado pela FIFA (que é uma espécie de CONMEBOL, só que global) não permitiu que isso acontecesse. Dois minutos antes do gol de Firmino, um jogador inglês agarrou um jogador mexicano no meio de campo. Era um lance claro para cartão amarelo, até porque o jogador inglês já havia feito uma falta semelhante e recebido um cartão amarelo (para alguns, ele deveria ter sido expulso já nesse primeiro lance.) Ora, com o segundo cartão amarelo, viria a expulsão, e com ela, muito, mas muito provavelmente, uma prorrogação. E eu sei que já disse isso, mas não custa frisar: nessa prorrogação, o Liverpool seria obrigado a jogar com um homem a menos. Que dureza!

O VAR, é claro, não se manifestou, pois ele só pode fazê-lo se o lance for de cartão vermelho. O problema é que, sendo um lance claro para cartão amarelo, o lance necessariamente envolveria a aplicação de um cartão vermelho... Dentro das regras atuais, no entanto, o VAR (convenientemente) não podia interferir. Toda a responsabilidade estava nas mãos do homem que segurava o apito, o chileno Roberto Tobar.

E ele não decepcionou. Todos queriam ver Flamengo vs Liverpool na final; e, mais do que todos, a FIFA queria ver o bilionário time europeu na final. Sorry, mexicanos.

Eu, flamenguista desde criancinha, fico feliz com a decisão da FIFA, digo, com o resultado do jogo. Se o Monterrey tivesse ido para a final, os antis diriam que o Flamengo só foi campeão porque escapou do Liverpool. Afinal, eles dizem que o Liverpool é o melhor time do mundo e que o Flamengo vai perder de 5 na final.

O problema é que o colar de brilhantes mais caro não é necessariamente o mais belo. Sim, é possível que o Liverpool seja o melhor time do mundo, mas é preciso não esquecer que ele precisará provar isso no jogo de sábado. No fundo, a coisa toda é muito simples: o melhor time do mundo é aquele que vencer a final. Que vença (mas sem o dedinho da arbitragem) o melhor.


23.11.19

1981 + 2019 = 4000 batidas por minuto


Quase aconteceu o que eu mais temia. O experiente time do River não deixou o Flamengo jogar e ficou a minutos de vencer o jogo.

Eu não acompanho futebol regularmente, mas já vi jogos suficientes para poder afirmar que o futebol argentino evoluiu muito. Em vez de socos e botinadas, agora eles fazem faltas violentas usando o tronco e a cabeça, e ao menos na Libertadores essas faltas, mesmo quando chegam a ser marcadas, não rendem cartões amarelos. É como se o "ombro a ombro" (legítimo) virasse um "vale tudo com o tronco". Assim, os argentinos param o jogo à vontade, as faltas não são punidas, o excesso de faltas não é punido... E muito menos a catimba.

Essa continua a mesma. Tendo achado um gol numa indecisão da zaga do Flamengo, os argentinos catimbaram e fizeram cera o quanto puderam durante todo o resto do jogo. Cada lateral era um parto, cada bola nas mãos do goleiro podia facilmente render uma ida ao banheiro.

E a arbitragem até parecia colaborar. Quando o goleiro argentino pegava na bola, o juiz sempre dava as costas para ele — acintosamente, eu diria e corria para o meio do campo, como se dissesse: "Leve o tempo que quiser, pois quando você resolver colocar a bola novamente em jogo, estarei aqui a postos para apitar o jogo."

Aliás, no quesito arbitragem tendenciosa, também houve, em função das novas regras, alguma evolução. Por exemplo, um impedimento claro de um jogador do River só foi marcado quando Diego Alves fez uma defesa difícil. Tivemos ali um tempo valioso (para o Flamengo) desperdiçado numa jogada que não valia nada (ou talvez passasse a valer em caso de gol argentino, nunca se sabe). Mas em pelo menos um impedimento do Flamengo, rapidamente marcado pelo bandeirinha, parecia valer a regra antiga. Como se tornou flexível, ao desembarcar nas Américas, o esporte bretão!

Quanto ao tempo de jogo, de que valeria a cera argentina se o juiz punisse os catimbeiros com 6 ou 7 minutos de acréscimo, não é mesmo? Mas 5 minutos de prorrogação no segundo tempo já seriam demais. O juiz deu apenas 4, e só não deu 3 porque pegaria muito mal. Os caras estão realmente ficando sofisticados. A arbitragem é tendenciosa, porém com muita precisão, para não dar na vista. 

Mas estamos indo rápido demais. Recuemos para os 30 ou 35 minutos do segundo tempo. Faltavam uns 10 ou 15 minutos para o fim do jogo e tudo parecia perdido, mas os argentinos cansaram, Jesus fez boas substituições e o Flamengo, pela primeira vez durante a partida, conseguiu jogar um pouco do que sabe. E bastaram esses últimos minutos para o Flamengo liquidar o jogo. Depois do segundo gol do Flamengo o juiz deu, é claro, mais 1 minuto de prorrogação pois, evidentemente, não podia dar mais 2.

Por fim, tendo compreendido que Gabigol havia sido o responsável por estragar a festa, o juiz o expulsou. É aquela coisa: se um argentino chuta o adversário caído e um brasileiro faz gols, os dois têm de ser expulsos pelo bem do espetáculo. Até agora eu não sei por que o brasileiro foi expulso. A transmissão da Conmebol não mostrou absolutamente nada: possivelmente porque não havia nada para mostrar.

E o VAR? Todos viram a bola no braço de um zagueiro argentino que resultaria num pênalti, mas o VAR considerou que o braço estava junto ao corpo e ficou em silêncio. Será? E se fosse contra o Flamengo? Ainda estaria junto ao corpo o tal braço? Ou...

Parabéns ao time do River. Seus jogadores fizeram o que sabem fazer e quase ganharam mais uma. Ficaram em campo para ver a festa do Flamengo e parecem ter compreendido que, se um time só consegue jogar 10 minutos e ainda assim consegue vencer, é porque merece ser campeão. Embora tenha ganho um monte de vezes a Libertadores, o River, tal como Grêmio e Flamengo, tem um único mundial. Todos esses títulos aconteceram nos anos 80. Hoje em dia está difícil ganhar dos europeus.

Mas nenhum jogo poderia ser mais difícil do que este. Os dois times do Flamengo que foram campeões da América, este e o de Zico, têm o mesmo perfil: times de futebol vistoso e técnica apurada. Não é esse o perfil da Libertadores.(1)

Neste ano de 2019, o Flamengo de Jorge Jesus venceu os habilidosos, os botinudos e os retranqueiros (qualquer semelhança com o filme de Sérgio Leone não é mera coincidência) e foi campeão num jogo inesquecível. Que venha o Mundial de Clubes; será outra parada dura, mas ao menos não haverá Conmebol. Se o Flamengo jogar tudo o que sabe coisa que não fez neste jogo e o Liverpool vier de peito aberto, teremos um novo 3x0.


(1) Por falar nisso, podem anotar: jamais permitirão que o Flamengo chegue à final da Libertadores em 2020 no Maracanã. Se o time não vacilar em algum momento, será garfado. Eles sabem que o Flamengo no Maracanã é muito difícil de bater. Por falar nisso, é estranho escolher o lugar da final com tanta antecedência. Por que não decidir isso ao longo da competição, fazendo a final sempre num país "neutro"? Por que fingir que estamos na Europa? Quem ganha com isso? 

81 + 19 = futebol nota 100


Em 1981, a Libertadores foi decidida em três jogos, e a grande final também foi realizada num 23 de novembro.

Em 2019, pela primeira vez na história, a decisão da Libertadores será realizada num único jogo, numa imitação do que ocorre na Europa. A única coisa que me preocupa é que não estamos na Europa. Se rolar uma hermanada (ou uma conmebolada) não haverá um segundo jogo e ficará por isso mesmo.

Esse é o meu único receio. E saber que o meu time (nosso time) vai jogar bonito é minha única certeza.

Nesse sentido, já me sinto campeão do mundo. Que o resultado do jogo confirme esse sentimento!


20.11.19

O terraplanista

Está online a Edição nº 10 da Revista Athena, dirigida pela minha amiga Júlia Moura Lopes, que gentilmente incluiu um conto meu, que se chama O terraplanista.

Como já registrei neste blogue, Júlia também publicou, em números anteriores dessa revista independente na qual tenho orgulho em colaborar, um pequeno conto chamado Baranek Wielkanocny e um minúsculo artigo: O que significa (mal) ler e escrever?

O texto de O terraplanista foi entregue em 10 de outubro e apenas agora eu o reli. Já estou, é claro, planejando pequenas revisões em alguns trechos, mas o que mais me agrada é o fato de estar relaxado quanto a isso. Obstinado na busca pelo melhor (sempre!), mas não obcecado: é a vaidade do ofício, talvez a mais ferrenha entre todas, ficando para trás.


17.11.19

Uma lição de jornalismo (e não só de jornalismo)

Hoje, durante o jogo entre Flamengo e Grêmio, o narrador de futebol da TV Globo deu uma lição de jornalismo. Lição involuntária, é claro, mas não menos preciosa por isso.

Num dado momento, a imagem mostra que, numa disputa de bola próxima à área do Grêmio, Gabigol, o artilheiro do campeonato brasileiro, foi pisado por um adversário. É difícil saber, pois o lance foi mostrado pela TV uma única vez, mas, aparentemente, o pisão foi involuntário. Seguiu-se, então, um diálogo (que irei citar de memória) entre o narrador e um dos comentaristas.

Narrador: "Se foi involuntário, não dá nem pra chamar de pisão."
Comentarista (aparentemente indignado): "E você chama de quê?"
Narrador: "Eu chamo de toquinho" (com o primeiro "o" aberto, ou seja, "pequeno toque".)

Flagrado em sua tentativa de transformar um pisão num leve e inofensivo "toque", o narrador tenta se explicar:

— É que se eu chamar de "pisão", a torcida vai reclamar, vai querer expulsão do jogador...

A coisa toda é de uma clareza cristalina. A narrativa jornalística não é produzida com base nos fatos, mas com base nos (supostos) efeitos que esses fatos poderão provocar na audiência.

Em outras palavras, o narrador explicitou, com todas as letras, que a tarefa do jornalismo é manipular a audiência. Pouco importa que os fatos tenham sido mostrados claramente pelas câmeras; no limite, não há fatos, o que vale é a narrativa.

Obrigado, narrador! Você, que foi contratado para clonar o Galvão Bueno e que, embora até hoje não saiba diferenciar um lençol de um chapéu, tem desempenhado bem sua tarefa, prestou, ainda que involuntariamente, um enorme serviço ao povo brasileiro. E não se preocupe; quando chegar a minha vez de discutir o (intrincado) problema da Verdade na filosofia de Nietzsche, você será lembrado.

* * *

No mesmo jogo, o especialista em arbitragem da TV Globo disse que não marcaria o pênalti que decidiu o jogo. Não é pênalti quando a bola bate no braço que está apoiado no chão, diz a nova regra.

A TV Globo parece estar ansiosa para agradar aos paulistas (e não é de hoje).¹ Só que, mais uma vez, a imagem desmente a narrativa. O zagueiro do Grêmio só chegou a tocar o chão depois de tocar na bola. E ele sequer se "apoiou" no chão com o braço; ao contrário, ele caiu (com a mão e o braço) sobre a bola.



Portanto, o pênalti foi bem marcado, e a nova regra só se aplica a casos como este:


É preocupante ver que o jornalismo comete o crime de manipulação e de lesa-verdade quando o assunto é futebol. Já imaginaram se ele fizesse o mesmo ao tratar de temas como cultura, política, direito e economia?

¹ Uma passagem que hoje é fácil entender pode tornar-se enigmática com o passar dos anos. Os paulistas são aqui mencionados porque, ao tempo em que este texto foi escrito, o Palmeiras ainda tinha chances, embora remotas, de superar o Flamengo e conquistar o Campeonato Brasileiro de 2019.


ATUALIZAÇÃO (18/11/2019)

Disseram-me que, ontem, o Fantástico fez questão de repetir o veredicto do especialista de arbitragem que pontificou durante o jogo e teria, se pudesse, anulado o pênalti legítimo que deu a vitória ao Mengão. Hoje, Juca Kfouri, que entende o suficiente de futebol para saber que o Flamengo será heptacampeão brasileiro em 2019, chamou, entretanto, de "malandro" o referido pênalti.

Será que Juca, com toda a sua experiência, não sabe ler uma imagem? Não creio. O que faltou foi simplesmente a pesquisa e, principalmente, a vontade de realizar a pesquisa. A única coisa que não faltou foi aquele inconfessado desejo de diminuir, de denegrir a vitória do mais querido.

Eu não achei prontas na Internet as duas imagens acima. Tive de rodar um vídeo, pausá-lo nos momentos precisos, efetuar as respectivas capturas. Mas quem quer apenas impor a narrativa que lhe convém não precisa dar-se ao trabalho.

Nietzsche não pode ser apenas isso. Ele não era medíocre.


9.11.19



13.10.19

Mais um pequeno e irrefletido lapso

Há canais de comunicação por aí insistindo que o Flamengo quebrou hoje "um tabu de 45 anos" ao vencer, pelo Campeonato Brasileiro e em sua própria casa, o Atlético Paranaense.

Eles só esqueceram de avisar que, em seis temporadas desse mesmo Campeonato Brasileiro, não houve confronto, pois os amiguinhos não apareceram para jogar: estavam na segunda divisão.

Além disso, apenas a partir de 2003 o "Brasileirão" adotou o formato atual (pontos corridos), que torna obrigatório o enfrentamento de todas as equipes.

O Atlético é um adversário difícil de ser batido, principalmente jogando em seu próprio estádio, revestido de grama sintética. Mas a inépcia de certos narradores é praticamente imbatível; esse, em particular, não sabe a diferença entre um lençol e um chapéu...

* * *

Em novembro teremos um conto novo em Athena. Esse já não será delicado (ou curto) como o anterior.


2.10.19

Assim nem Jesus resolve

Minha mulher me perguntou se, com a pressão de uma emissora grande como a Globo, haveria menos equívocos nos jogos da Libertadores da América. Afinal, no segundo gol anulado do Flamengo, a Rede Globo mostrou, bem depois do lance e uma só vez, uma imagem que mostrava que não havia impedimento (nem razão para anular o gol). Ninguém, absolutamente ninguém da emissora comentou a imagem.

Eu tive de responder: é Libertadores, meu bem. Aqui é uma equipe de arbitragem argentina que decide quem é o time brasileiro que vai decidir o campeonato com los hermanos. Podendo eliminar de antemão o time mais forte, por que não?

Depois, no intervalo, mostraram a "imagem oficial" da Conmebol. Mesma linha. Todos ignoraram a realidade e abraçaram a fantasia. Agora sou eu quem está ignorando o segundo tempo e escrevendo um tantinho.

Causa asco o comportamento cínico e servil da imprensa brasileira, e é doloroso ver o Júnior misturado a essa gente. Alguém aqui se lembra de João Saldanha ou de Mário Vianna?


Atualização pós-jogo


Malandragem. Faltou um tantinho de malandragem ao time do Flamengo. Quando um jogador do seu time sofre uma falta no ataque, fica caído e o juiz é argentino, o que se deve fazer? Como não há "vantagem" alguma, o que se deve fazer é dar um bico para a lateral e pedir atendimento para o jogador. Senão acontece o que aconteceu: metade do time ficou esperando a falta ser marcada, a outra metade ficou preocupada com o jogador caído no chão, que está desfalcando o time e pronto: contra-ataque, bola cruzada justamente pelo lado do defensor caído (e que foi substituído em seguida) e gol do Grêmio.

Totalmente sem noção. Levando em conta apenas o número de Libertadores conquistadas, um comentarista "pós-jogo" da Rede Globo teve a infelicidade de sugerir uma "hierarquia" entre Grêmio e Flamengo. Só que o Flamengo foi fundado antes do Grêmio, foi campeão mundial antes do Grêmio e não é apenas campeão mundial de futebol, mas também de basquete, façanha que, até hoje, só dois clubes (Flamengo e Real Madrid) conseguiram. Também foi campeão brasileiro antes e tem mais campeonatos brasileiros (5 contra 2), mesmo sem contar o sexto campeonato (1987), reconhecido por todos, até pelo Juca Kfouri... mas não pelo STF. Assim, é uma estupidez completa falar em "hierarquia", ainda que o Grêmio também leve vantagem em algumas poucas coisas, como em confrontos diretos (5 vitórias a mais) e Libertadores (2 a mais). Até em número de campeonatos regionais o Flamengo ganha, e olhem que a parada no Rio é bem mais difícil.

Quanto às Libertadores a mais, é natural: gaúchos conhecem melhor e sabem enfrentar melhor os uruguaios e os argentinos, que dominam o torneio (sem mencionar a Conmebol) e sempre chegam às finais. Sabem, inclusive, bater mais e melhor.

Antijogo. Falei mal dos argentinos, mas é preciso reconhecer que o VAR alertou o juiz para o violento pisão que Gérson levou no primeiro tempo. Afinal, esses alertas só acontecem quando o lance pode ocasionar expulsão. O juiz amarelou. Também não deu a falta clara em Filipe Luís (que deu origem ao gol) e várias outras. No fim das contas, juiz e VAR formaram uma equipe bem entrosada.

3 x 0. Se o juiz deixou de marcar tantas faltas claras, por que marcou a faltinha no lance do primeiro gol anulado? O jogador do Grêmio tentou fazer uma obstrução, levou um empurrão e acabou caindo. O lance nem mesmo teve interferência no gol, pois os dois jogadores envolvidos não viram a cor da bola quando esta foi cruzada e rebatida pelo goleiro. Ou seja... Saudades de Vianna e de Saldanha. Mas acho que eles não gostariam de estar aqui vendo essas coisas.

Pode esquecer. Infelizmente, o Mengão pode esquecer essa Libertadores. Se não cair diante dos juízes argentinos, cairá diante do time argentino. Ou por que é que vocês acham que, desta vez, a final será decidida em um jogo único? Acham mesmo que esse pessoal passou a odiar estádios cheios e rendas milionárias, assim, do nada?

Ser torcedor de futebol na corrupta América Latina é uma estupidez. Mas não deixa de ser interessante apostar no gênio e no acaso contra as cartas marcadas.

Exagero? Paranóia? Acabei de rever o resumo da partida no globoesporte. Lá vocês podem ver o ângulo de câmera que mostra o impedimento no quarto gol o Flamengo, corretamente anulado. Já no segundo gol anulado, não foi incluído esse ângulo. A imagem que mostraria o impedimento simplesmente não foi exibida no resumo da partida! Essa omissão, per se, é praticamente uma prova de que o lance foi garfado. O que mais explicaria a total falta de critério? Por que a imagem do impedimento é mostrada num lance, mas não no outro?

A imagem do "impedimento" também não aparece no resumo da partida feito pela FOX (YouTube). Depois a emissora dedicou um vídeo à análise do lance. No próximo jogo todo mundo vai entrar em campo de chuteira verde.

Por outro lado, o pisão em Gérson resume bem o que foi o jogo. Durante essa jogada, a falta indicada pelo VAR como passível de expulsão foi ignorada pelo juiz, que, enquanto Gérson rolava no chão, marcou uma outra falta (comum) contra o Flamengo.

Exagero? Paranóia? No lo creo.

Alucinações. A descrição desses cinco minutos de jogo pelo Correio Braziliense é tão ruim (para não dizer canalha) que mereceria uma postagem inteira. Nem vou comentar...


25.8.19

O que significa (mal) ler e escrever?

Há alguns dias minha amiga Júlia Moura Lopes publicou a nona edição da Revista Athena. Desta vez, minha contribuição foi um ensaio muito curto que pode ser acessado no link abaixo:

O que significa (mal) ler e escrever?


21.6.19

VAR de condão

1. Instrumento audiovisual, operado por magos com poderes ilimitados, capaz de transformar praticamente qualquer coisa em outra inteiramente diferente. De "VAR", acrônimo de Vamos Arranjar o Resultado, e "condão".
Ex.: Mestre Júnior disse ontem que o VAR de condão operou a seleção japonesa.

Piores momentos (ainda o futebol)

O Japão foi convidado, juntamente com o Catar, para participar da Copa América.

Mas foi convidado apenas como coadjuvante, e perder para o Japão não faz parte do script. Assim, se o time latino-americano estiver perdendo, será preciso que o VAR entre em ação. Não é preciso esperar muito; qualquer coisa serve. Você chutou o pé do adversário? Perfeito! Marcaremos pênalti a seu favor. Depois, quando chegar a vez de marcar um pênalti contra o time da casa, bastará deixar o jogo correr.

O jogo de ontem, Uruguai 2 x 2 Japão, foi exemplar, pois expôs o modus operandi do VAR. Por exemplo, se for preciso marcar um pênalti, serão seguidos os seguintes passos:

1. O VAR obriga o juiz do jogo a rever o lance.

2. Se houver um ângulo de filmagem favorável à interpretação desejada, ele será (2.1) mostrado no fim da análise e (2.2) repetido à exaustão. Assim, por mais absurdo que seja o lance, o juiz de campo saberá que existe ao menos um ângulo de filmagem (no caso do jogo de ontem, precisamente aquele em que não se percebe o que realmente aconteceu) para sustentar sua decisão, isto é, a decisão do VAR.

No mais, nos lances que beneficiariam o outro lado, basta fingir que não aconteceram. Ou anulá-los, caso o árbitro tenha sido inocente o bastante para marcá-los. Tudo é possível para quem tem o VAR (esse brinquedinho inebriante!) nas mãos.

A propósito, não vi o jogo. Fui alertado sobre mais um VAR em ação e vi um compacto de 5 minutos com os... melhores momentos?


16.6.19

Meu último jogo de futebol

Os donos do futebol estão confiantes no produto que têm em mãos. O futebol movimenta uma fortuna, dos ingressos à venda de jogadores, dos direitos de imagem às bolsas de apostas.

Como eu disse quando da introdução do VAR na Copa de 2018, a manipulação de resultados, sobretudo em jogos internacionais, ganhou um novo patamar: uma espécie de última instância praticamente anônima, pois os árbitros de vídeo jamais dão as caras, dentro de campo e mesmo fora dele.

O jogo Austrália 3 x 2 Brasil (realizado em 13 de junho) foi exemplar. O terceiro gol australiano, corretamente anulado pela árbitra, foi validado por insistência do VAR. A jogadora australiana impedida era a única jogadora adversária na área do Brasil, subiu para disputar a bola com as duas zagueiras brasileiras, e mesmo assim os árbitros do VAR conseguiram convencer a árbitra do jogo que a australiana não havia "participado do lance".

Depois os árbitros do VAR decidiram ignorar um pênalti claro a favor do Brasil, e desta vez sequer convocaram a árbitra de campo para rever a jogada. Os meios de comunicação que consultei não fazem nenhuma referência ao lance. É como se jamais houvesse existido.

Não estou dizendo que o Brasil merecia vencer o jogo, até porque não merecia. Eu ficaria contente com um empate, e não lamentaria uma derrota digna. Mas o que testemunhei me fez tomar uma decisão radical: nunca mais irei perder meu tempo com futebol. A não ser, quem sabe, jogando: desde que não haja VAR, é claro.

A declaração de Cristiane (que não fez nenhuma referência à arbitragem) na entrevista após o jogo foi profissional e exemplar. O segundo gol do Brasil foi um dos mais belos que já vi. Você viu? Tamires deu uma caneta na adversária e um passe em profundidade para Debinha, que fez um cruzamento preciso para Cristiane, que cabeceou com consciência no cantinho do gol. São momentos como esse que fazem a coisa toda valer a pena.

O problema é que, no meu caso, o desconforto ético já superou (em muito) o prazer estético. Em duas horas dá para fazer muita coisa produtiva: ler, escrever, conversar, assistir a um bom filme e todos os eteceteras do mundo. Talvez você ainda tenha muito tempo pela frente, mas meu estoque de horas está se esgotando e eu resolvi não perder mais tempo assistindo a espetáculos que me trazem mais tristeza do que alegria. Conseguirei cumprir minha determinação? Veremos. Já passei no primeiro teste: troquei a estréia do Brasil na Copa América por dois episódios da extraordinária série Chernobyl. Você viu?


8.6.19

Baranek Wielkanocny

Há exatos 25 anos, comecei a escrever contos e a fazer experiências (algo semelhante à música) em teclados eletrônicos. Não sendo escritor e muito menos músico, pesavam sobre mim todas as deficiências formais de quem não domina sua arte; mas eu punha naquelas experimentações, obviamente, toda a minha alma. Elas tinham como pano de fundo uma decisão metodológica que não ousei revelar ao meu orientador, e sequer a mim mesmo. É que eu iria abordar o tema da criação artística em Bergson (é o terceiro capítulo de minha dissertação), e inconscientemente percebi que não estaria sendo suficientemente honesto ao abordar um tema a respeito do qual meu conhecimento se resumia a umas tantas teorias estéticas. Eu queria, tanto quanto possível, enxergar de dentro o tema a respeito do qual iria dissertar, e para isso eu tinha de fazer da criação não apenas um problema teórico, mas também prático.

Hoje, 25 anos depois, minha amiga Júlia Moura Lopes publicou o oitavo número da Revista Athena, e nela um pequeno conto que escrevi há pouco mais de um mês. Está tão fresco que já revisei uma ou duas palavrinhas, mas nada além disso, em relação à versão ora publicada.

O conto chama-se Baranek Wielkanocny e tem ao menos uma virtude: é bem curto.


5.6.19

detalhes tão pequenos de nós bois

Ontem o Flamengo (clube de maior torcida do Brasil) venceu o Corinthians (segunda maior torcida do Brasil) em pleno Maracanã (estádio que já foi o maior do mundo, que foi palco do milésimo gol de Pelé e que sediou duas finais de Copa do Mundo). Não era um mero amistoso; valia vaga num campeonato de âmbito nacional (Copa do Brasil). E a vitória do mais querido foi decretada por um gol, um único gol (de Rodrigo Caio) que decidiu o jogo e selou a classificação dos cariocas.

O problema é que esse único e decisivo gol não foi marcado "de cabeça", tal como foi noticiado (em mais de uma matéria) no jornal O Globo.

Há alguma lição a tirar de um fato (aparentemente) tão sem importância?

Engana-se quem pensa que o futebol é o esporte mais popular no Brasil. Nosso esporte-mor, paixão e mania de nosso povo, é a fofoca. Somos realmente bons em contar aquilo que não vimos e falar daquilo que só conhecemos por ouvir dizer. Um pequeno passo adiante, não mais, e já estamos a noticiar o que nunca soubemos e a escrever sobre o que jamais estudamos.

O brasileiro já não se define por um simples jeitinho. Ele é... criativo.


23.5.19

Desafio contracultural 750ABX52

Ultimamente, certas similaridades têm me espantado muito mais do que as desde sempre esperadas diferenças. É dentro desse espírito que proponho ao leitor ou leitora este desafio. Você consegue adivinhar os autores dos trechos abaixo?

Role a página para saber as respostas.

O que eu observo é que o mesmo princípio pedagógico vale para todas as disciplinas. A idéia geral do ensino é passar ao aluno um certo grupo de certezas que ele nunca mais virá a questionar. E eu não vejo a menor utilidade disso, porque quase tudo, em ciência, pode ser colocado em dúvida. Praticamente tudo.

Quando um grupo de pessoas pernósticas e incompetentes, chamadas professores, ensina a um indivíduo sem gosto e vocação, uma série de noções tolas ou, no máximo, discutíveis, consegue formar, no fim de uma dezena de anos, essa coisa ao mesmo tempo ridícula e monstruosa que se chama um homem culto.

































Respostas: Olavo de Carvalho e Millôr Fernandes.

E agora? Você saberia dizer quem é o autor do primeiro texto e quem é o autor do segundo?

8.5.19

Acima de todos

Somada às recentes decisões concernentes à liberdade de expressão e às decisões econômicas que envolvem a diminuição de receitas ou o aumento de despesas públicas, a rumorosa licitação de acepipes e beberetes faustosos parece indicar que a possibilidade de desmoralização (ou mesmo inviabilização) do atual governo é a menor das preocupações do STF.

É uma formidável demonstração de poder. Os ministros sabem que as ofensas reiteradamente vociferadas pelas redes sociais não têm nenhuma importância. E sabem, sobretudo, que o ônus de uma hipotética ruptura institucional recairia justamente sobre o atual governo e voltaria contra ele (em definitivo) a opinião pública internacional.

Não é uma situação confortável para o cidadão comum, que já tem angústias e problemas que bastem. Mas se é que fazer graça com coisas tão sérias possui algum poder consolador, vale a pena notar que a realidade já se encarregou de dar aval à metade mais excelsa do slogan do governo atual: pois o Brasil pode até não estar acima de tudo, mas o Supremo está, sem nenhuma dúvida, acima de todos.

29.4.19

uma era de ouro

Certa vez, numa conversa com Lydio Bandeira de Mello (a quem estou devendo uma visita), eu disse que estamos vivendo, num âmbito global, uma era de ouro.

Ou seja, se pensamos que o presente é ruim, é porque ainda não vimos (ou previmos) o futuro. Ainda gozamos de uma relativa liberdade, inclusive no que diz respeito à mais importante entre as liberdades, a de expressão; nossos oceanos ainda não são imensos depósitos de lixo quase sem vida; ainda existem abelhas, florestas e reservas de água doce; os conflitos ainda são localizados e não se tornaram guerras de grandes proporções; ainda não testemunhamos ataques atômicos, químicos ou biológicos que fariam os genocídios do século XX parecer simples ensaios; a democracia liberal não foi inteiramente substituída por ditaduras populistas ou teocráticas, e ainda subsiste em alguns países; o controle total da sociedade por meio da tecnologia ainda está tomando forma; quase todos os países ainda compartilham uma única Internet; e ainda não nos tornamos (todos) inteiramente estúpidos e insensíveis, embora caminhemos para isso a passos largos.

Assim, apesar de todos os enormes problemas, alguns deles não mencionados acima, ainda há tempo para cantarmos what a wonderful world; sem esquecer, entretanto, que grandes privilégios trazem consigo grandes responsabilidades.

27.4.19

A pobre da Filosofia

Haveria algo de divertido e irônico no recente anúncio do corte de verbas nas áreas de Filosofia e Sociologia? Certamente que sim.

Em primeiríssimo lugar, diverte-me ver a Filosofia, que nasceu há milhares de anos, ser equiparada a uma disciplina como a Sociologia, que nasceu ontem (isto é, no final do século XIX) com Gabriel Tarde e Émile Durkheim.

Me diverte que ataquem justamente a Filosofia, pois, hoje, ela não tem poder algum, mesmo nos grandes centros de produção de conhecimento, e menos poder ainda num país como o nosso.

Me diverte ver a Filosofia, que é justamente o campo onde se estuda uma disciplina chamada Ética, ser desvalorizada num dos países mais corruptos do mundo.

Me diverte pensar que, ao menos na minha época, a presença do marxismo numa pós-graduação de Filosofia (UFRJ) era praticamente nula. E duvido que isso tenha mudado tanto assim. Filosofia é um universo muito vasto, de modo que existe lugar para o marxismo na Filosofia, mas jamais se poderá fazer da Filosofia um apêndice do marxismo (a não ser, é claro, num regime totalitário ou numa cabecinha muito limitada).

Me diverte (e me diverte imensamente) pensar que os mesmos que acusam as universidades de forjar imbecis em série sejam os mesmos que defendem a idéia de liberdade e de responsabilidade individual. Afinal, somos livres e responsáveis ou somos produzidos pelo "sistema" como sardinhas em lata? Fico com a impressão de que esse pessoal mal sabe do que está falando.

Me diverte pensar que alguém possa chutar o que seria um dos três pés de uma civilização que diz defender.

Só não me diverte pensar que os mais pobres terão ainda mais dificuldades para estudar Filosofia. Mas, como diria o filósofo, no Brasil pobre só se fode.

19.4.19

Confrontation: Badiou versus Finkielkraut


Este é, por enquanto, o meu livro do ano, tanto mais surpreendente nestes tempos em que os confrontos não conduzem ao diálogo, mas a sórdidos jogos de poder. Realmente esclarecedor.

Hoje (dia 19 de abril) haverá um confronto semelhante: Slavoj Zizek versus Jordan Peterson. Ainda não conheço o trabalho de Peterson e só conheço Zizek a partir de uns poucos textos, mas se a conversa render apenas metade do que rendeu o debate entre Badiou e Finkielkraut, terá valido a pena. Espero que liberem o material o quanto antes, pois não pretendo pagar apenas para assistir online...

update (20.04.2019)

O debate será oficialmente liberado no YouTube dentro de um mês, mas já estão circulando cópias não autorizadas do vídeo na plataforma. Peterson não fez justiça ao pensamento marxista, sobretudo quando mencionou as relações entre Homem e Natureza; de resto, fez as inevitáveis críticas que se espera de alguém que prefaciou um livro de Solzhenitsyn e disse coisas bastante sensatas.

Zizek, por sua vez, pareceu-me fazer críticas ao capitalismo muito mais inteligentes e nuançadas do que as de Badiou no seu debate com Finkielkraut. Apesar da dificuldade para entender o inglês macarrônico de Zizek, fica a impressão de que ele estava muito mais à vontade, o que acabou passando a impressão (errônea ou não) de que ele estava mais bem preparado, seja lá o que isso signifique.

O debate entre Badiou e Finkielkraut (curiosamente ignorado nesta matéria do jornal O Globo) foi centrado em temas atuais e específicos, o que faz dele um vigoroso estímulo ao pensamento. Já o debate entre Peterson e Zizek, centrado num tema demasiadamente geral, valeu mais pela mútua boa vontade entre os dois acadêmicos e pelos surpreendentes pontos de contato apresentados, inclusive na crítica ao politicamente correto.

Impossível terminar esta nota sem mencionar a exposição de Zizek sobre a tese de Brian Andre Victoria (Zen and Japanese Militarism). Afinal, a crítica ao que há de terrível numa tal tese só pode conduzir ao estabelecimento da responsabilidade individual como um conceito-chave incontornável. Eu até me arriscaria a dizer que esse é o centro que esquerda e direita não podem desprezar jamais.

15.4.19

Notre-Dame de Paris

Hoje, em Paris, a catedral mais famosa do mundo foi parcialmente consumida por um incêndio.

Choram crentes e ateus.

No Brasil, arde a liberdade de imprensa.

14.4.19

Surface web, Deep web e Dark web

A confusão a respeito desses temas é tão espantosa, e vem sido fomentada na mídia por nomes tão respeitáveis, que por um momento somos tentados a acreditar que tudo não passa de uma imensa campanha de desinformação.

Não creio. Em primeiro lugar, não vejo nenhum motivo plausível para a existência de uma conspiração como essa. Em segundo lugar, não vejo nenhuma razão pela qual profissionais respeitadíssimos arriscariam suas duramente estabelecidas reputações escrevendo artigos que qualquer (qualquer é mera força de expressão, bem entendido) estudante de informática poderia refutar com ótimos argumentos.

Não. A confusão é conceitual e vem se arrastando desde 2001, quando a locução deep web teria sido cunhada. E não, destrinchar esse arredio animal não é uma tarefa que "qualquer" estudante seria capaz de realizar. Por sorte, um brasileiro de apenas 20 anos chamado Natanael Antonioli, que administra o site Fábrica de Noobs e um canal homônimo no YouTube, soube trabalhar o conceito à perfeição e ganhou minha bênção filosófica. Não é que a bênção de um filósofo valha alguma coisa nos dias de hoje, mas... você entendeu.

"Desmistificando: Deep Web" é o vídeo mais recente que Antonioli produziu sobre o tema. Há muitos outros sobre o mesmo tema e sobre muitos outros temas, tudo muito bem organizado e com farto material de estudo compartilhado gratuitamente.

Não percam. O moleque é bom.


5.4.19

A diferença conceitual entre rememorar e comemorar

Lá pelos anos 90, se não me falha a memória, uma simpática escritora brasileira cujo nome não cometerei a indelicadeza de revelar disse, no programa televisivo Sem censura, que a palavra "comemorar" reunia os vocábulos "comer, morar".

Foi um choque, já que a escritora não estava descrevendo uma vista puramente poética (que seria inteiramente aceitável), mas uma suposta (e fantasiosa) etimologia da palavra.

Lembrei-me desse fato hoje, ao ler, num jornal de circulação nacional, o texto de um jornalista muito conhecido que escreveu o seguinte: a etimologia não distingue a palavra "rememorar" da palavra "comemorar".

Pode ser. O problema é que ninguém leva em conta a etimologia, por exemplo, ao chamar alguém de idiota. Conhecer a origem de uma palavra e sua etimologia é sempre (ou quase sempre) esclarecedor, como vimos na análise da origem da palavra "chiclete"; mas usar  esse conhecimento para engessar a língua e dar curso a mal disfarçadas sanhas inquisitoriais é coisa completamente distinta.

Para mim, que por acaso escrevi sobre o tema da rememoração no primeiro capítulo de minha dissertação, a coisa toda é, do ponto de vista conceitual, que não coincide necessariamente com o ponto de vista etimológico, extremamente simples.

Rememorar é um ato psicológico. Comemorar (tal como cooperar) é um ato social.

* * *
E é só isso. De minha parte, nada a comemorar.


25.3.19

A origem da palavra "chiclete"

Segundo uma das lendas urbanas difundidas na Internet, a palavra "chiclete" deriva da marca comercial "Chiclets". O processo de formação do nome (metonímia) teria sido o mesmo que, no Brasil, deu à fotocópia ou cópia reprográfica o nome de "xerox" e à lâmina de barbear o nome de "gilete".

The evening world. New York, July 12, 1905, Evening Edition, Image 11
(Fonte: The Library of Congress)

Por causa dessa lenda urbana, muita gente acredita que a única designação "correta" da coisa seria goma de mascar. A lenda difundiu-se e já foi até publicada em livro. O problema é que, como veremos, a palavra "chiclete" deriva da palavra náuatle tziktli.

A fonte dessa informação é o livro Historia general de las cosas de Nueva España, de Bernardino de Sahagún, publicado pela primeira vez em 1590. Na língua dos astecas, tziktli (espanhol chicle) significa "coisa grudenta". A goma de mascar era amplamente utilizada na sociedade asteca e, muito provavelmente, nas sociedades que a antecederam. Entre os astecas, apenas as moças solteiras podiam marcar chicletes. As mulheres casadas, as viúvas e os homens não podiam mascá-los, ao menos em público; em privado, porém, os chicletes eram mascados livremente. Esse tabu, que, curiosamente, permaneceu vivo durante séculos, deriva do fato que o chiclete (já naquele tempo) era usado para mascarar o mau hálito, sendo associado às mulheres públicas, ou seja, à prostituição.(1)

Percebe-se que há um abismo de diferença entre a formação das palavras xerox, gilete e chiclete. O substantivo comum "gilete" deriva do nome próprio de seu inventor, o americano King Camp Gillette. As palavras "xerox" e "xerografia" foram forjadas a partir do grego antigo – ξηρός (seco), γραφή (escrita) – e remetem, portanto, a uma época na qual (provavelmente) ninguém sequer sonhava em fabricar máquinas fotocopiadoras. Nesses dois casos houve, sem sobra de dúvida, derivação por metonímia: a marca comercial tornou-se substantivo comum (xerox, gilete) e verbo (xerocar).

Adams California Fruit Chewing Gum ad painted from a photograph of Ruth Roland.
Page 84 of the September 1919 Shadowlands. (Fonte: Wikipedia)

A palavra Chiclets, por sua vez, teve origem num substantivo comum, o espanhol chicle. Thomas Adams, fundador da American Chicle Company (grifo meu), só conheceu o chiclete porque trabalhou como secretário de um político mexicano que costumava mascar uma goma natural, talvez a mesmíssima goma usada pelos astecas. Esse político, que se chamava Antonio López de Santa Anna, tentou ele mesmo, embora sem sucesso, comercializar o chicle em larga escala.

Assim, apenas é possível dizer que a palavra "chiclete" formou-se a partir da marca comercial "Chiclets" se virarmos as costas a várias (muitas) centenas de anos de história. Se é certo dizer que foi graças ao americano Thomas Adams que começamos a mascar chicletes (e a usar a palavra chiclete), é historicamente incorreto ignorar que o chiclete é uma invenção de antigas civilizações mesoamericanas e que a palavra Chiclets deriva do espanhol chicle, que deriva, por sua vez, do náuatle tziktli. Não, não foram os americanos que inventaram o chiclete; eles não inventaram nem a coisa, nem a palavra; e não, não há razão para dar à palavra "chiclete" um tratamento diferente daquele recebido pela palavra "chocolate", outra invenção da civilização mesoamericana que se espalhou pelo mundo inteiro com seu nome original apenas ligeiramente modificado.


(1) SAHAGÚN, Fray Bernardino de. El México Antiguo (Edición de Jose Luis Martinez). Caracas, Ayacucho, 1981, p. 113.


18.3.19

Welcome to the machine


Em 25 anos na capital, Marcello morou em alguns dos melhores endereços da cidade, como a Asa Sul. Introvertido, nunca foi de fazer amigos. Em depoimentos à polícia, alegou ter sofrido bullying na escola e, desde cedo, odiar mulheres. Detestava ser derrotado em qualquer brincadeira para uma oponente do gênero feminino. De pele branca, também nunca gostou de negros, LGBTs, nordestinos e políticos e militantes de esquerda.


Nunca um órgão de imprensa sério publicaria: "Nordestino, Fulano nunca gostou de LGBT's." Afinal, se Fulano é homofóbico, isso nada tem a ver com sua condição de nordestino.

Do mesmo modo, um jornalista sério jamais escreveria: "Gay, Beltrano nunca gostou de negros". Afinal, se Beltrano é racista, isso nada tem a ver com sua condição de LGBT.

Mais um exemplo? O que vocês diriam se lessem: "De pele negra, Sicrano nunca gostou de judeus"? Não ficariam imediatamente indignados, e não apenas com o desprezível anti-semitismo de Sicrano, mas com a odiosa alusão à cor de sua pele?

O mesmo não se aplica, infelizmente, aos chamados "brancos". Nesse caso, a cor da pele é mencionada, passando a valer como um princípio explicativo. O sujeito não é homofóbico, racista e sexista porque tem vários parafusos a menos, mas porque é branco. É precisamente isso que a redação do texto citado sugere. "De pele branca, também nunca gostou..."

Haverá algum propósito nessa manifestação pública de racismo? Não creio. Haverá alguma justificativa jornalística? Também não, pois o leitor já conhecia a cor da pele do indivíduo, que aparece na foto que ilustra a matéria.

Não há propósito nem justificativa, mas sempre haverá conseqüências. É muito difícil mensurar o ódio que uma manifestação de racismo publicada em um grande meio de comunicação é capaz de criar. E que razão teríamos para brincar com essas coisas, ainda mais num momento como este?

Esse é o tipo de manifestação que se espera ver numa rede social racista, misógina e homofóbica como a que foi criada pelo cidadão brasiliense que foi objeto da matéria. Vê-la publicada no site do Correio Braziliense, que, se não me equivoco, é o jornal mais importante da capital do país, dá uma dimensão verdadeiramente nacional à terrível mensagem que acreditávamos estar confinada à Dark web:

"A máquina de ódio continua a operar."


15.3.19

Pode-se dizer que, em última instância, estamos todos circulando em torno de um ralo?

Há coisas que eu não entendo no Brasil.

Se são onze os ministros do STF e sete os ministros do TSE, é claro que estes últimos possuem, considerados individualmente, maior poder decisório. Dito de outro modo, um voto entre sete é mais decisivo do que um voto entre onze. No limite, se a decisão coubesse a apenas um ministro, este decidiria sozinho, ou seja, monocraticamente.

Assim, como três dos sete ministros que compõem o TSE são escolhidos entre os onze que compõem o STF, o ministro do STF que vota por um incremento de competência do TSE está, automaticamente, votando pelo incremento de seu próprio poder.

Quando o poder executivo faz algo semelhante a isso, dá uma confusão dos diabos.

23.2.19

Uma aula fortuita

de interpretação de texto, de história, de jornalismo, de política e de ética (esqueci alguma coisa?)

Compare o texto publicado às 13:58h com o texto publicado às 14:10h e tire suas próprias conclusões.

A propósito: o texto retirado na segunda versão foi republicado às 15:23h, porém no finalzinho da notícia, que acabou ganhando mais algumas aspas.

13.2.19

Muses go home



Alguém, numa rede social, achou que "musa" é sinônimo de "miss". Não é divertido? O tuiteiro, coitado, julgou e condenou, do alto de sua sabedoria televisiva, o CNPq; e o que mais poderia ele ter feito, se é uma venezuelana esplêndida que lhe chacoalha o cérebro em nervosas sinapses quando a palavra "musa" se apresenta aos seus sentidos?

A seguir, porém, acontece o inesperado: um importante veículo jornalístico do Rio de Janeiro repercute a ignorância do rapaz e publica uma irrelevância baseada num equívoco como... notícia.

Aqui já começamos a perder a vontade de rir. Precisávamos de mais essa dose de deseducação?

Por fim, veio a resposta do próprio CNPq, que, por algum motivo, manteve-se na defensiva e eximiu-se de explicar o que é uma musa. Podia ter esclarecido, para o bem de todos, que "musa" é uma coisa, e "miss", outra. Podia ter educado, mas omitiu-se. Sim, houve uma discretíssima referência à "fonte de inspiração" no texto divulgado pelo CNPq, mas quem tira algum benefício desse excesso de elegância? Custava explicar?

Agora é tarde. Embora nada tenham contra as moças dos concursos de beleza, as musas, ultrajadas por haverem sido confundidas dessa maneira, irão nos abandonar, para nosso azar, à nossa própria sorte.


2.2.19

circenses

Hoje o Brasil deu ao mundo um exemplo de produtividade.

Tínhamos apenas 81 senadores, porém logramos produzir 82 votos.

As nações se perguntam como conseguimos essas coisas.

Mas os senadores não se fizeram de rogados.

Para elevar ainda mais a produtividade, foram votar novamente.

Quem sabe não conseguiam 90 votos ou mais?

Então um deles disse que a brincadeira estava acabada

porque ele não queria mais brincar.

A brincadeira continuou, é claro.

O circo não interrompe o espetáculo por causa de um palhaço ou dois.

29.1.19

Um alerta sobre hipotireoidismo e levotiroxina (hormônio da tireóide)

RESUMO: Jamais guarde a levotiroxina na geladeira

Certa vez, num comentário a um vídeo do YouTube, uma mulher disse ter melhorado muito ao trocar a levotiroxina fabricada no laboratório "A" pela fabricada no laboratório "B".

O comentário chamou-me a atenção, já que eu estava pesquisando o assunto justamente porque havia experimentado uma significativa melhora ao passar a tomar o hormônio desse mesmo laboratório "B".

Numa das respostas a esse comentário, um usuário desbancou a moça dizendo que aquela afirmação era anticientífica, pois se ela estava tomando a mesma dose da mesma substância, não poderia haver diferença alguma, devendo o resultado obtido explicar-se pelo efeito placebo.

É o tipo de afirmação (ela sim, anticientífica) que demonstra que a educação brasileira é um fiasco, e se você não percebeu isso de imediato, convido-o a examinar as palavras do rapaz e a descobrir por si mesmo o tamanho da bobagem dita por ele. Mas não é sobre isso que eu quero falar aqui.

Afinal, por que eu estava me sentindo muito melhor ao usar o hormônio do laboratório "B"? Um efeito placebo era altamente improvável, já que eu havia simplesmente ganho uma amostra grátis do remédio (casualmente ofertada, aliás, pelo meu cardiologista) e que minha expectativa de obter uma diferença qualquer no tratamento a partir dessa troca de laboratórios era zero.

Quem solucionou esse problema para mim foi meu endocrinologista, Dr. Leônidas Di Piero Novais.

Até então eu estava guardando o hormônio, que é muito sensível a variações de temperatura, dentro da geladeira, e isso estava reduzindo sua eficácia em mais ou menos um terço. Como estávamos no inverno e eu não vi, naquela circunstância, necessidade de guardar a amostra grátis do laboratório "B" na geladeira, o remédio se manteve íntegro e fez muito mais efeito.

É o tipo de erro ao qual podemos ser induzidos facilmente, já que usamos refrigeradores precisamente para conservar por mais tempo as características dos alimentos, pois sabemos que o calor acelera as reações químicas que degradam os nutrientes... No caso da levotiroxina, porém, obteremos o efeito inverso, atrapalhando bastante o tratamento. Por óbvio, também devemos evitar o armazenamento do hormônio em lugares aquecidos (como eletrodomésticos). Há quem guarde seus remédios em cima da geladeira, o que é inteiramente desaconselhável.

Fiz uma rápida pesquisa e não achei nada a respeito desse tema na Internet lusófona, o que me animou a registrar aqui o precioso esclarecimento do Dr. Leônidas.

Como o problema abordado aqui diz respeito às condições de armazenamento do remédio, não há razão para mencionar nomes de laboratórios. Por outro lado, seria de interesse público saber como se dá o armazenamento da levotiroxina nas farmácias, mas num país disfuncional como o nosso sempre haverá grandes desastres para nos distrair dos pequenos. De todo modo, espero que esta nota ao menos sirva de alerta para outros pacientes que dependem do uso da levotiroxina.

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16.1.19

a uma pedra no meio do caminho

Muitos brasileiros desaprenderam (ou jamais chegaram a aprender) em que situações deve-se usar a preposição "a" e a forma verbal "há". Mesmo em jornais dos mais expressivos, outrora assombrados por escritores, a troca de um vocábulo pelo outro, entre outros erros primários, é vexatoriamente corriqueira.

Quem viveu a longa era em que esse erro era inexistente (e não viveu numa caverna analógica nestes últimos dez anos) sabe que a responsabilidade é da Microsoft, pois o péssimo corretor gramatical do então onipresente Microsoft Word 2007 (e possivelmente de outras versões do programa) induz a esse e a vários outros erros gramaticais. Deveríamos até considerar o pagamento de uma compensação (talvez a doação de livros para bibliotecas?) pelos prejuízos generalizados que a ferramenta mal feita causou à educação do país.

Passado, entretanto, o período inicial de indignação contra as malditas corporações, acabaremos nos dando conta de que jamais teríamos sido ludibriados pelo maligno corretor gramatical se tivéssemos feito nosso dever de casa e aprendido o raio do Português corretamente. Nesse caso, teríamos desligado o incorretor, ou o teríamos usado de forma crítica, ou teríamos ainda trocado de processador de textos. Eu mesmo me diverti muito tirando prints de vários erros bárbaros sugeridos pelo Word 2007 na época em que traduzi As Leis Sociais. Portanto, de nada adiantará aplicar a (merecida) multa na corporação malvada se não fizermos, ao mesmo tempo, nosso mea culpa.

Quais serão as conseqüências sociais e políticas dessa regressão generalizada na compreensão e no uso correto da língua portuguesa? Que será dos brasileiros, expostos o tempo todo às palavras de ordem de partidos e religiões, porém incapazes de acompanhar discursos um pouco mais complexos que lhes permitiriam ampliar sua compreensão das coisas?

Apenas constatar o fato (de que os brasileiros lêem e escrevem cada vez pior) e tornar a criticar a "qualidade do ensino" não vai nos tirar do buraco em que estamos nos metendo. Já sabemos que falhamos miseravelmente; saberemos inventar caminhos para reverter a situação?


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