3.1.13

A cultura e a morte (A1-2013)

Para muitos, a televisão é um espelho de seu "mundo próprio", como se diz na linguagem da etologia. As obras de ficção refletem seus sentimentos, os telejornais refletem os limites de sua sede de conhecimento, os anúncios refletem seus desejos de consumo. É claro que, em todos esses casos, a programação não apenas reflete ou reforça, mas ajuda a produzir esses mesmos desejos e sentimentos; mas não é sobre isso que eu quero falar.

O que seria a televisão para alguém que vive afastado, ou ao menos tão afastado quanto possível, da "realidade dominante"? Seria algo como uma expedição antropológica: a oportunidade de observar (sem ser forçado a propriamente entrar em contato) um povo que vivesse nos antípodas, ou, no limite, uma espécie inteiramente diferente.

No domingo passado tive uma dessas experiências. Num programa apresentado pela Regina Casé, conheci o "funk ostentação", de origem paulistana. Pelo que pude apurar, os vídeos dessa turma, que fala basicamente em consumo e ostentação, são visualizados aos milhões no YouTube.

Regina Casé é uma mulher inteligente, e foi interessante observar seu esforço para, sem entrar em confronto direto com os funkeiros da ostentação, dar-lhes um "toque". Ela disse que o desejo de ter um carrão do ano não impede que lutemos pela melhoria do transporte público. Tímida e bem intencionada tentativa de valorizar uma temática de interesse coletivo numa comunidade inteiramente pautada pelo individualismo.

Tudo isso toca num ponto que me é muito caro. Por um lado, é claro que o desprezo e a hostilidade (comuns a tantos intelectuais) nunca conduzirão a lugar algum. Antes de mais nada, é preciso acolher o outro como ele é, ainda que ele seja de outra aldeia, ou mesmo de outra espécie. A esse respeito, Regina sabe tudo. Por outro lado, no entanto, aceitar ou acolher as diferenças não significa abrir mão da afirmação de um ponto de vista diverso que confronte o ponto de vista do outro.

Notem - já que o tema anda em voga - que eu não estou me referindo, por exemplo, a coisas como sexualidade. Aqui não há "confrontação" possível, e assim como eu me reservo o direito de tratar como estúpido qualquer um que menospreze minha heterossexualidade, os homossexuais têm o direito de fazer o mesmo com aqueles que os criticam. Gostar de figos, de bananas ou de ambos não é tema para uma discussão séria. Gosta-se, saboreia-se e assunto encerrado. E já que me senti forçado a fazer essa ressalva, não custa acrescentar que qualquer discussão sobre etnia ou cor da pele consegue - e isso não é fácil - ser ainda mais ridícula do que a anterior.

Assim, quando eu digo que "aceitar ou acolher as diferenças não significa abrir mão da afirmação de um ponto de vista diverso que confronte o ponto de vista do outro", estou falando de algo bem específico: de maneiras de sentir e de pensar, e de modos de vida.

O que eu teria a dizer à turma do funk da ostentação? Apenas isto: que a vida deles é pautada, do início ao fim, pelo olhar do outro, e pior, pelo olhar de um outro que é igualmente pautado pelo olhar do outro. Seu desejo é possuir algo que o outro valoriza para que possam atribuir a si mesmos o valor que o outro dá ao que eles possuem.

E podemos realmente recriminá-los? Digo, estarão eles inventando alguma coisa? É claro que não; escravos numa sociedade de escravos, eles apenas imitam o comportamento da imensa maioria dos seres humanos que vivem em sociedades capitalistas. Desejar dinheiro e carros de luxo (para ser, por sua vez, desejado) é simplesmente o grau mais rasteiro da vida pautada pelo olhar do outro. Há quem deseje outras coisas, mas exatamente pelos mesmos motivos. Assim, não há uma diferença de natureza, mas apenas uma diferença de grau, entre o funkeiro ostentatório e o professor universitário que deseja ver seu saber reconhecido, seja pelos seus alunos, seja pelos seus pares. Não é por acaso que um filósofo viu nesse desejo do desejo do outro a própria humanidade dos seres humanos.

Isso tem cura? Certamente que sim. E essa cura nem mesmo passa pela recriminação do "consumismo" (ou pela recriminação da "erudição", conforme o exemplo do professor universitário), mas pela compreensão daquilo que pode efetivamente transmutar escravos em homens livres. A filosofia jamais teve outro sonho, e cabe a cada filósofo inventar uma maneira diferente de abordar esse problema.

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