23.10.13

A privacidade e as biografias não autorizadas


O segredo está no mais íntimo âmago do poder.¹
Elias Canetti


As biografias devem ser autorizadas pelos biografados ou seus herdeiros? Essa polêmica não revela somente uma contradição entre um artigo do Código Civil e a Constituição mas, acima de tudo, a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre dois conceitos fundamentais para a vida (e a vitalidade) de qualquer sociedade democrática: liberdade de expressão e privacidade. Até que ponto o direito à privacidade pode limitar o direito à liberdade de expressão e vice-versa?

Antes de mais nada, precisamos fazer um esforço para compreender, neles mesmos, os conceitos envolvidos. Por que digo neles mesmos? Porque tentar entender um determinado conceito por meio de outro conceito é, por assim dizer, o caminho natural da inteligência, mas traz poucos resultados positivos. Não me darei ao trabalho de conceituar a liberdade de expressão. Vou me concentrar no conceito de privacidade, que me parece ser o ponto realmente decisivo neste debate.

O termo "privacidade", ensina o Houaiss, é um anglicismo de uso recente em nossa língua, provavelmente introduzido nos anos 70. Vejamos o que diz (em tradução livre) o dicionário Oxford a respeito do termo privacy: "(1.a) O estado ou condição de estar afastado do convívio dos outros, ou do interesse público; reclusão. (1.b) O estado ou condição de estar sozinho, sem ser perturbado, ou livre da atenção pública, como uma questão de escolha ou de direito; estar livre de interferência ou intrusão."

Confere. É precisamente assim que eu compreendo a palavra. Mas é claro que uma simples definição de dicionário não poderia nos fornecer tudo o que precisamos para compreender o conceito; ela não passa de um ponto de partida. Passar da palavra a algo semelhante a um conceito irá requerer algum esforço. Iniciemos esse esforço de forma bem suave, usando a imaginação.

Neste exato momento, estou sozinho em meu quarto. A porta e as cortinas estão cerradas, e se resolvo ficar pelado ou plantar bananeira, ou ambos, ninguém tem nada a ver com isso. Não há testemunhas; ou melhor, sou a única testemunha de mim mesmo. Penso, respiro e vivo em segredo. Notem que eu delimitei um espaço - este quarto - e também um tempo: neste exato momento. Se eu sair deste quarto, encontrarei minha mulher; e caso ela entre no quarto, este "exato momento" terá sido substituído por outro, no qual eu também já não estarei sozinho.

Assim, dentro do meu quarto ou fora dele, saí de minha solidão e passei a conversar com minha mulher. Devemos supor que minha privacidade foi suprimida? Não necessariamente. Pode ser que eu me sinta tão à vontade diante de minha mulher que, ao encontrá-la, é como se eu estivesse comigo mesmo. Obviamente, não estou falando de nenhuma tenebrosa "identificação", mas de intimidade. No entanto, se no momento seguinte recebermos uma visita, será possível dizer que minha (ou nossa) privacidade foi mais ou menos cancelada.

Agora estou conversando com minha mulher na praia. Nós dois estamos em público; há centenas de pessoas ao nosso redor e, ainda assim, continuamos nos sentindo perfeitamente à vontade para conversar, pois nos achamos suficientemente longe dos demais, que não escutam o que dizemos. É um perfeito momento de privacidade, similar a esses em que estamos a sós com nossos pensamentos no meio da multidão.

Vejamos alguns exemplos clássicos de privacidade. Tudo o que pensei e imaginei é privado: a não ser, é claro, que eu tenha revelado a alguém meus pensamentos. Tudo que escrevi e guardei numa gaveta é privado: a não ser, é claro, que bisbilhotem minha gaveta ou que eu mostre esses escritos a alguém. Tudo o que fiz sozinho, longe de qualquer testemunha, é privado: a não ser que eu tenha narrado esses atos a alguém.

Pois bem. A privacidade possui uma característica que ninguém (ao que eu saiba) parece ter notado com suficiente atenção: tal como a liberdade, a privacidade só pode ser exercida aqui e agora. E apenas aqui e agora (ou apenas num aqui e agora qualquer) ela pode ser objeto de evasão ou invasão de privacidade.

Voltemos aos exemplos "clássicos". Digamos que eu pensei ou fiz alguma coisa há dez anos, e que só eu sei o que pensei ou fiz. Caso eu revele esse ato ou pensamento a um amigo, não estarei revelando o meu passado? Sim, é claro. Mas essa evasão de privacidade está ocorrendo num aqui e agora qualquer no qual revelei meu passado. Do mesmo modo, se algum intrometido abrir minha gaveta para ler aquele horrível poema inédito escrito há dez anos, a invasão de privacidade ocorrerá exatamente no aqui e agora que delimita o ato criminoso do intrometido. É impossível negar que meu poema faz parte de meu passado, aliás, de um passado que eu gostaria de esquecer. Mas a invasão de privacidade aconteceu no momento preciso em que o intruso o leu. Não podemos esquecer, porém, deste importante detalhe: ele só pôde fazer isso porque eu escrevi o maldito poema. Se eu o tivesse decorado, ao invés de vertê-lo no papel, o bisbilhoteiro teria se deparado com uma gaveta vazia.

Não será precisamente por isso que o homem que guarda segredos vive sempre receoso de, num momento ou noutro, se trair? Não é por essa razão que o homem que usa uma máscara sempre terá medo de vê-la cair ou ser arrancada à força? Apenas a morte (e a destruição de provas documentais, etc.) é capaz de transformar o segredo em puro esquecimento. O segredo, tal como a privacidade, se dá num perpétuo aqui e agora. O homem que, como eu, escreve poemas abomináveis, sempre poderá beber um gole a mais e cair na tentação de recitá-los em público. E aí será tarde demais. Eu só poderia salvar minha reputação apagando a memória de todas as testemunhas, ou então eliminando-as sumariamente.

Numa entrevista concedida de improviso nas ruas de Paris, Chico Buarque disse que "se for levar isso [a liberdade de expressão] ao extremo, o sujeito é obrigado a deixar invadirem sua casa, fazerem fotografias de cueca, exporem sua mulher em trajes mínimos, sem poder recorrer." Se você acha que Chico Buarque mostrou a posição dos defensores da liberdade de expressão de maneira caricatural (como se eles fossem capazes de invocá-la como um argumento capaz de autorizar invasões de domicílio e de privacidade), você acertou; mas apenas arranhou a superfície. Na verdade, Chico está mostrando muito mais, já que existem razões profundas para o fato de ter mencionado justamente a fotografia como exemplo.

Por definição, toda fotografia é colhida aqui e agora. Isso não basta para fazer de toda fotografia uma invasão de privacidade, mas basta para fazer de cada fotografia uma invasão de privacidade em potencial.

É por isso que Pedro Cardoso reclama, e com absoluta razão, dos paparazzi. Só que não faz muito sentido tentar ensinar a um paparazzo a diferença de sentido entre estrela da manhã e estrela da tarde, ou entre o artista público e o ser humano privado. É sutil demais para eles. Tudo o que eles conseguem enxergar é Vênus, a materialidade atual do aqui e agora. E tudo o que eles querem é roubar-lhe a alma.

A dificuldade de Pedro Cardoso demonstra que a distinção entre público e privado não basta para resolver o problema, pois dá margem ao uso de má-fé por parte do paparazzo. Afinal, este sempre poderá alegar que Pedro, na praia, está "em público". E agora? Muito mais clara e eficaz é a distinção entre o aqui e agora (sempre privado, salvo no momento preciso em que o artista está exercendo seu ofício ou dando uma entrevista) e aquilo que é objeto de pesquisa histórica: o passado, ou melhor, os relatos sobre o passado a partir dos quais o historiador (ou biógrafo) produz seu próprio discurso.

Dito de outro modo: meu aqui e agora somente é privado se eu não o compartilho com ninguém, ou se eu o compartilho na intimidade. E meu passado somente é privado na medida em que os antigos presentes (os presentes que passaram) também foram e continuam sendo privados. Mas sou eu que decido o que vou compartilhar, e com quem. Por isso mesmo, tenho todo o direito de considerar privado qualquer momento de solidão, ou de intimidade: mesmo que eu esteja em público, mesmo estando na praia mais cheia. A fotografia é potencialmente invasiva de uma dupla maneira: porque colhida aqui e agora, e porque pode ser tirada sem o consentimento do fotografado. Aqui ela se torna um caso particular de espionagem. E em casos de espionagem, não sou eu que abro mão de minha privacidade; é um outro que o faz no meu lugar, é um outro que decide por mim. Essas ameaças à privacidade são sérias e exigem soluções específicas. O que não podemos, em nenhuma hipótese, é confundir tudo e reivindicar um controle a priori sobre o discurso alheio a nosso respeito.

Quando Francisco Bosco pergunta: "um indivíduo deve ter ou não soberania decisória sobre a dimensão privada de sua vida?", devemos estar prontos para dar não uma, mas duas respostas. Se Francisco se refere ao aqui e agora, é claro que o indivíduo deve ser soberano e que sua privacidade deve ser respeitada e protegida até as últimas conseqüências. Mas se Francisco se refere ao passado, então a questão não se coloca, pois todo passado que o indivíduo compartilhou não pertence somente a ele, e apenas uma gigantesca queima de arquivo lhe devolveria a privacidade perdida.

Peço desculpas aos leitores sofisticados que não gostaram de constatar que eu perdi a oportunidade de enfeitar o pavão escrevendo hic et nunc ou, quem sabe, "blocos atuais de espaço-tempo". Aos demais, que ainda apreciam a simplicidade, eis aqui a diretiva que tudo resume: se há relatos, não é privado; e se é privado, não há relatos (estando, por isso mesmo, inteiramente fora do alcance dos biógrafos). Com a aplicação dessa regra simples e, naquelas inevitáveis exceções à regra, com o exercício permanente do bom gosto e da justiça (seja por parte dos próprios biógrafos, seja por parte dos tribunais), tudo pode ser equacionado da melhor maneira possível.

Francisco Fuchs


¹ Masse et Puissance. Paris, Gallimard, 1981, p. 308.


(última atualização: 25/10/2013 às 13:35)

3 Comentários:

Blogger -JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Querido Francisco,

Não sei se lembrará de mim, faz tempo que saí da blogosfera. Não encontrei seu email por aqui, vou falar porque me lembrei de si.

Contudo, estou aqui nesta Revista
e gostaria de um texto seu para publicar
http://www.incomunidade.com/

. Pode responder para o meu email? juliamoura.lopes@gmail.com

beijinho

2 de fevereiro de 2014 às 21:21  
Blogger Francisco Fuchs disse...

Querida Júlia,

Email enviado! Beijos

4 de fevereiro de 2014 às 03:29  
Blogger -JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Querido Francisco,

Já enviei resposta! Um beijinho!

4 de fevereiro de 2014 às 07:27  

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