6.4.15

As bijuterias envenenadas (parte 3)


3. A reação da Anvisa
"A carga de bijuterias retidas no Porto do Rio de Janeiro, oriundas da China, e que têm presença do metal pesado cádmio em sua composição, não representam (sic) risco iminente e nem agudo aos usuários destes produtos." (12)
Faz sentido comparar o risco de intoxicação por metais pesados ao risco de explosão de um barril de pólvora? O risco de explosão é iminente, e o risco de intoxicação é persistente. O risco de explosão é agudo, e o risco de intoxicação, crônico. A explosão se manifesta num instante e mata ou mutila instantaneamente; a intoxicação é muitas vezes subclínica (13), pode levar anos ou mesmo décadas para manifestar-se, e mata ou incapacita lentamente. Assim, dizer que as bijuterias com cádmio "não representam risco iminente e nem agudo" equivale apenas a dizer que elas são muito diferentes de um barril de pólvora. Se esse tipo de argumento possuísse algum valor, a maconha teria de ser liberada imediatamente, e o álcool, proibido... Em resumo, riscos de "explosão" e de "intoxicação" são riscos igualmente graves que, entretanto, se manifestam de maneiras inteiramente diferentes.

Basta uma leitura rápida da nota da Anvisa para revelar sua ambigüidade fundamental ou, se quisermos, o padrão "morde e assopra" que a caracteriza. Primeiro a Anvisa assopra:
"A população do Brasil e também a de todo o mundo convive com o cádmio, que está naturalmente presente em jazidas na natureza e na queima dos combustíveis fósseis". (12)
É verdade. Todos nós convivemos, em maior ou menor grau, com o cádmio, o chumbo, o mercúrio e tantos outros metais pesados. Estará a Anvisa sugerindo que, já que é assim, o melhor é relaxar e gozar? Sim e não. Sob pena de ficar desmoralizada ad æternum perante a valorosa comunidade científica brasileira (14), a Anvisa não podia simplesmente dizer que o cádmio e os seres humanos estão naturalmente "juntos e misturados", e que as coisas "são assim mesmo". Assim, era preciso "morder" um pouquinho:
"A presença do cádmio nestas bijuterias, associada ao cádmio já existente de forma natural no ambiente, amplia a possibilidade de risco à saúde". (12)
Note-se, porém, que a Anvisa "assopra" mesmo quando "morde". Ao dizer que o cádmio existe "de forma natural no ambiente", a Anvisa sugere que a contaminação por cádmio é "natural" e, portanto, "inevitável". Percebe-se de imediato o que se esconde nessa falácia: é como se o cádmio importado nas bijuterias não fosse capaz de contaminar ninguém que já não estivesse irremediavelmente contaminado; como se ele fosse, sim, capaz de "ampliar" os riscos, mas jamais de produzi-los diretamente. De acordo com a Anvisa, o cádmio "importado" só constitui um fator de risco porque é adicionado ao cádmio "nativo"; considerado em si mesmo, ele é estatisticamente insignificante.

Para derrubar a falácia da Anvisa (e para caracterizar a liberação da carga apreendida como uma péssima decisão), basta que uma única criança chupe ou morda regularmente (ou engula) uma dessas peças de bijuteria com elevados níveis de cádmio, comprometendo irremediavelmente seu desenvolvimento cerebral.

Essas considerações são tanto mais importantes na medida em que os riscos advindos dos metais pesados não se restringem, como quer a Anvisa, aos usuários das peças. Todas essas bijuterias baratas terão (e, em muitos casos, bastante rapidamente) o mesmo destino: o lixo comum. Estamos falando aqui da contaminação de rios, lagoas, lençóis d'água, plantações e assim por diante. Estamos falando da importação (entre 2009 e 2013) de nove mil toneladas de cádmio ou mais. Basta compreender a tragédia ambiental que a China está exportando para compreender que este outro argumento da Anvisa também é falacioso:
"O risco à saúde se dá principalmente pela ingestão ou pela inalação do cádmio; nas peças analisadas, a presença do cádmio está restrita a camada interna do produto. Acima dela há mais duas camadas de outros materiais". (12)
Ou seja, a Anvisa raciocina como se bijuterias baratas, muitas vezes vendidas a centavos de dólar, (a) jamais descascassem e (b) jamais fossem jogadas no lixo. Tal como as mocinhas e os políticos, ela pouco se importa com as criancinhas, e trata o risco de danos individuais como remoto; não satisfeita, ela ainda consegue a proeza de tratar o risco de danos ambientais como inexistente.

Estarei eu de má vontade com a Anvisa? Terei eu transformado a saudável dialética de argumentos "a favor" e "contra" numa artificial ambigüidade "morde e assopra"? Não creio. Vejamos meus dois últimos argumentos. Um deles é de simples ordem factual:
"Estados Unidos e Europa não realizaram recall para bijuterias com a presença de cádmio (...) Considerando que não há risco iminente e nem agudo à saúde, não há, nesse momento, necessidade de realização de recall". (12)
A primeira afirmação é simplesmente mentirosa. Basta ler o documento publicado pelo National Center for Biotechnology Information (15) ou, mais prosaicamente ainda, basta fazer uma busca no Google para verificar que, nesse caso, a Anvisa está faltando com a verdade. Essa mentira foi inventada exclusivamente para reforçar a segunda afirmação; e esta, por sua vez, pode ser traduzida, como já vimos, deste modo: "uma vez que bijuterias com alto teor de cádmio não são barris de pólvora, não precisam ser devolvidas às fábricas ou aos países de origem."

Tudo é um tanto confuso e difícil de entender. Por que Dirceu Barbano, então diretor da Anvisa –  tão severo e cuidadoso ao lidar com o canabidiol – foi tão benevolente com uma substância tóxica e ambientalmente perigosa como o cádmio? Por que a avaliação da Anvisa diverge tão radicalmente da avaliação do Inmetro? (16) Por que um órgão de alta responsabilidade como a Anvisa baseou sua questionável decisão em mentiras e falácias? Enfim: por que uma carga irregular, altamente tóxica e ambientalmente perigosa (que pertencia, ainda por cima, a sonegadores de impostos) não foi imediatamente devolvida ao seu país de origem?

Para esclarecer definitivamente esse mistério, façamos uma simples experiência mental: o que teria acontecido se as bijuterias fossem provenientes dos Estados Unidos ou da Europa? Não estaríamos berrando aos quatro ventos que os imperialistas estavam envenenando nossas crianças para se livrarem de seu lixo tóxico? Não teríamos devolvido imediatamente, indignados, toda a carga de cádmio ao seu país de origem? Não teríamos proibido rapidamente esse tipo de importação?

Sim, é precisamente isso que teríamos feito. E com toda razão: nesse tipo de matéria, não há (ou não deveria haver) espaço para quaisquer considerações secundárias. A única operação aceitável, aqui, é a tautologia: lixo tóxico é lixo tóxico – e deve ser imediatamente devolvido, venha ele de onde vier.

Conclusão: se não foi isso que aconteceu, é porque as afinidades ideológicas falaram mais alto do que os mais altos interesses das pessoas que aqui vivem. Corolário: invariavelmente, a ideologia é o prenúncio do horror. Seja ela de direita ou de esquerda.



FONTES

(12) Nota conjunta da Anvisa e Senacon sobre cádmio em bijuterias da China (Anvisa / Senacon, 22/11/2013)
(13) Intoxicação subclínica por metais pesados (Tsutomu Higashi)
(14) Método detecta metais tóxicos em joias, piercings e bijuterias (Unicamp)
(15) Cadmium confusion: Do Consumers Need Protection? (National Center for Biotechnology Information) => Clique aqui para baixar a versão em PDF
(16) Cádmio e Chumbo em Bijuterias e Joias - Inmetro (PDF)

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