17.10.17

Arte e liberdade de expressão (terceira parte)

Não basta dizer que os recentes conflitos a propósito de obras e exposições de arte no Brasil estão contaminados por uma polarização ideológica que não beneficia em nada o esforço de compreensão. É muito pior do que isso: quem não se alinha automaticamente a um dos lados será acusado (também automaticamente) de favorecer o discurso do outro lado. Ao que parece, a liberdade de pensamento foi reduzida a isto: estamos autorizados a "ter uma opinião" (a "escolher um dos lados"), mas não a pensar.

É por isso que eu já havia definido, desde que comecei a escrever as primeiras linhas este artigo, que iria buscar na Europa, e não no Brasil, o objeto de minha análise. Refiro-me à instalação "Domestikator", realizada por um coletivo holandês chamado Atelier Van Lieshout.


A análise da forma dessa instalação não oferece maiores dificuldades. Há duas figuras fazendo sexo. A figura bípede que segura a outra pela cintura (provavelmente) representa um homem. A outra figura, por sua vez, não é humana. Seu tronco é uniformemente mais grosso; o conjunto formado pela cabeça e pelo pescoço é mais alongado; inexiste a flexão dos membros inferiores que seria de esperar num ser humano. O próprio nome da instalação confirma a análise da forma, já que a domesticação é (usualmente) uma relação entre homens e animais: Domestikator representa um homem fazendo sexo com um quadrúpede.

Pois bem. O diretor do Museu do Louvre, Jean-Luc Martinez, embora reconhecendo que o Domestikator denuncia "de maneira lúdica e artística a dominação [humana] sobre o planeta Terra"(7), cancelou a exposição da obra na Feira Internacional de Arte Contemporânea (FIAC) e foi duramente criticado por Joep Van Lieshout, fundador do coletivo holandês.

Antes de passar à análise do caso Domestikator, que encerrará este artigo, gostaria de chamar a atenção para um aspecto que seria cômico se não fosse trágico: o despreparo (ou a desonestidade) da imprensa (em várias partes do mundo) para simplesmente descrever de maneira adequada uma obra de arte contemporânea. Alguns meios, é bom ressaltar, fizeram exceção: o já citado Libération, por exemplo, e a revista Le Point (8) fizeram uma leitura correta da obra e ressaltaram (ou ao menos sugeriram, no caso do Libération) que o Domestikator descreve um ato sexual entre um homem e um animal. Mas inúmeros outros grandes veículos de comunicação, seja por pudor, ignorância ou má-fé, suavizaram a leitura da obra. Vejamos uns poucos exemplos.

Embora tenha reproduzido as palavras de Van Lieshout, segundo o qual "o trabalho simboliza o poder da humanidade sobre o mundo e sua abordagem hipócrita da natureza", o The New York Times diz, singelamente, que a obra representa "uma cópula".(9) O Le Monde afirma que a instalação foi rejeitada por fazer uma "evocação explícita de um ato sexual".(10) Veículos ingleses menos cotados como o The Sun (11) e o Daily Mail (12) preferiram não se comprometer e descreveram a obra como "dois prédios fazendo sexo". O jornal O Globo, por sua vez, conseguiu superar todos os seus concorrentes ao afirmar que "a escultura (sic) por um lado lembra um prédio com janelas, mas também mostra um homem em forma de caixas durante o ato sexual com outra pessoa."(13)

Vejamos se a análise desse caso nos permitirá avançar, por pouco que seja, no nosso tema.



(continua)



(7) Une œuvre retirée du parcours hors-les-murs de la Fiac pour sa connotation sexuelle (Libération)
(8) "Domestikator": un viol allégorique qui a fait peur au Louvre (Le Point)
(9) Louvre Pulls Sculpture, Saying It Was Sexually Explicit (The New York Times)
(10) FIAC : l’œuvre « Domestikator », du Néerlandais Van Lieshout, retoquée pour sa connotation sexuelle (Le Monde)
(11) Bonkers artwork of two buildings ‘having SEX’ axed from top show because it would be seen from a school playground (The Sun)
(12) Did the roof move for you? 'Sexually explicit' art installation that looks like two buildings having SEX is scrapped by the Louvre (Daily Mail)
(13) Louvre cancela exposição de escultura considerada sexualmente explícita (O Globo)


Anteriores:
Arte e liberdade de expressão (primeira parte)
Arte e liberdade de expressão (segunda parte)

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