18.10.17

Arte e liberdade de expressão (quarta parte)

A rigor, o único problema da instalação Domestikator é um problema de escala. Apenas os mais puritanos condenariam a obra se ela tivesse metro e meio de altura e fosse exibida no interior de um museu. Do mesmo modo, respeitada a classificação indicativa, qualquer cinema pode exibir Salò.

O problema é que Domestikator mal caberia no interior de um museu. A instalação, que pesa 30 toneladas, tem 12 metros de altura, mais ou menos o equivalente a um prédio de quatro andares. Por isso afirmei que se trata de um problema de escala. A obra do coletivo de Joep van Lieshout se impõe ao olhar de quem passa.


Devemos supor que Jean-Luc Martinez, diretor do Museu do Louvre com formação em arqueologia e história da arte, recusou a exposição da instalação holandesa no Jardim das Tulherias porque é um burocrata e um censor imundo? É mais ou menos o que sugere Joep van Lieshout ao dizer que a decisão foi "hipócrita" e que os museus são administrados por "juntas de advogados e gente de marketing".

Vejamos alguns dos argumentos do artista em defesa de sua obra.

[A]. Uma vez instalada no Jardim das Tulherias, a obra ficaria ao lado de um parque infantil. Joep van Lieshout afirma que, se as crianças porventura entenderem de que se trata, é porque já são grandes o bastante para entender... Contudo, ao dizer isso, van Lieshout parece ignorar a existência de uma singela realidade chamada linguagem. Bastará que uma única criança compreenda o que a obra representa para que todas as outras, e isso inclui crianças bem menores que a primeira, sejam informadas a respeito. Não faltará tempo para que a informação se espalhe. A obra estará lá, à vista de todos, dia após dia.

[B]. Numa entrevista ao site dezeen, Joep van Lieshout afirmou que a obra "não é sobre sexo, é sobre a ética da inovação tecnológica. Ela convida as pessoas a pensar sobre um assunto muito importante: o que fazemos com nosso avanço tecnológico? O que fazemos com o big data, com a inteligência artificial, com os robôs?".(14) Ao The Guardian, ele disse que sua obra aborda a domesticação de animais para a agricultura e a indústria, bem como sublinha os problemas éticos decorrentes da domesticação.(15)

Um adulto esclarecido poderá levar algum tempo até extrair da imagem em questão tudo o que nela está contido, e é bem possível que alguns adultos sequer consigam enxergar todas as coisas e matizes que o artista, tão habilmente, conseguiu sintetizar numa única imagem. Mas pode-se dar como certo que raríssimas crianças serão capazes de entender toda essa conversa. Elas provavelmente entenderão a obra apenas em seu nível mais raso, doggy style.

[C]. Um tanto previsivelmente, o artista holandês chama de censura a decisão do diretor do Louvre. Ao fazê-lo, no entanto, ele abusa do sentido do termo: M. Martinez não "proibiu" ou "baniu" sua obra, e nem teria poder para isso; ele apenas recusou sua exposição no museu pelo qual é responsável. Tanto é assim que, pouco tempo depois, Domestikator foi calorosamente acolhido pelo Centro Georges Pompidou, cujo diretor o qualificou como "espiritual"(15) e "uma utopia magnífica em sintonia com o espaço público".(16)

Aliás, por falar em "censura", não custa lembrar que o Museu d’Orsay, tão incensado pela bela exposição Emmenez vos enfants voir des gens tout nus, não hesitou em chamar a polícia e apresentar queixa contra a artista que resolveu expor no museu (já que de gente nua se tratava) sua própria origem do mundo.(17) Ora, assim como roubar a cena dos artistas em exposição não é nem um pouco elegante, impedir que tal coisa aconteça não é "censura".

[D]. Ainda na entrevista para o site dezeen, van Lieshout fez uma afirmação com a qual todos concordamos: "Penso que a arte deve ser um lugar onde há pouquíssimos limites." Ora, um desses limites é justamente o da classificação indicativa por faixas etárias. Raras pessoas teriam maturidade suficiente para compreender, antes de completarem 18 anos, a dura mensagem de Salò. Há, portanto, boas razões para que esse filme não seja exibido em colégios. Do mesmo modo, há boas razões para não exibir em praça pública uma obra que retrata, em escala monumental, uma cena de bestialidade. A não ser que o coletivo holandês acredite seriamente que sua obra é mais importante do que a de Pasolini, não há por que reivindicar um privilégio que a obra do italiano jamais teve (e provavelmente jamais terá).

* * *

Mas, afinal, o que significa tudo isso? Até aqui, procurei me manter no plano da mera análise e tentei esclarecer alguns aspectos em jogo na obra Domestikator e no discurso de seu autor. Na próxima (e última) parte, tentarei esclarecer a partir de uma perspectiva inteiramente diferente a atitude de um artista como Joep van Lieshout.

Duas últimas observações se fazem necessárias. Não custa insistir que minha crítica à instalação Domestikator refere-se ao seu caráter monumental. Não fosse por essa monumentalidade, eu não enxergaria o menor problema na obra do coletivo holandês. É, como eu deixei claro desde o início, um problema de escala. Veremos na próxima parte o que, a meu ver, esse problema de escala revela.

Por fim, é bom deixar claro para o leitor que eu não estou tentando fazer uma espécie de "análise indireta" ou "referência velada" aos recentes acontecimentos no Brasil. Ao menos até aqui, o que eu disse a propósito da obra Domestikator foi pensado "sob medida" para ela e não serve para pensar outra coisa.

Mas já que acabei me referindo aos casos brasileiros, gostaria de fazer uma pequena observação sobre eles. Todos os meios de comunicação que tenho consultado falam sistematicamente das ocorrências em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Parece-me incompreensível que o caso de Mato Grosso do Sul, apenas por não se adequar a esta ou aquela agenda, ou quiçá atrapalhá-las, esteja merecendo uma atenção menor (ou praticamente inexistente) da imprensa. Deveria ser precisamente o contrário, pois apenas nesse caso houve uma intervenção explícita do poder público e um ato que merece, com todas as letras, o nome de censura. O silêncio a esse respeito é vergonhoso e desprezível.


(continua)



(14) Louvre cancels Atelier Van Lieshout installation amid concerns over "explicit or sexual" content (dezeen Magazine)
(15) 'Obscene? Pornographic?' – Louvre deems sexually explicit sculpture too risqué (The Guardian)
(16) Le Domestikator : le Louvre lui dit non, le Centre Pompidou lui ouvre les bras (Le Figaro)
(17) L’artiste qui s’est déshabillée au musée d’Orsay explique son geste (exponaute)




Anteriores:
Arte e liberdade de expressão (primeira parte)
Arte e liberdade de expressão (segunda parte)
Arte e liberdade de expressão (terceira parte)

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial

eXTReMe Tracker