30.10.17

Arte e liberdade de expressão (quinta parte)

A arte contemporânea interdita a própria possibilidade de diferenciar "arte" e "não-arte". Por definição, obras e ações realizadas com intenção artística são arte. Ao inquisidor caberá (além do estigma de reacionário) o ônus da prova; e ele falhará invariavelmente.

Os antigos critérios de excelência artística, fossem quais fossem, não poderiam sobreviver ao desenvolvimento do capitalismo, cuja dinâmica tende a suprimir os códigos vigentes nas sociedades tradicionais. Ademais, para além das razões puramente estéticas que os especialistas poderão invocar, essa abertura responde também a uma necessidade econômica, ou melhor, a uma oportunidade econômica que não haveria de ser desperdiçada. Restringir o Mercado de Arte às obras de um punhado de grandes artistas seria, do ponto de vista econômico, uma grande tolice. Novamente, porém em outro sentido, trata-se de uma questão de escala: porque tudo é arte, haverá mais artistas, mais obras e mais dinheiro em circulação, não somente para os próprios artistas, mas para todos os envolvidos na cadeia produtiva do mercado de arte.(18)

Esse movimento de mercantilização não afetou apenas as artes plásticas e as artes em geral: literatura, música, teatro, cinema. Ele afetou todos os aspectos da vida no campo social capitalista. Enquanto estudantes universitárias de grandes centros urbanos orgulham-se de não saber cozinhar, as grandes empresas de alimentos processados tornaram-se responsáveis pela alimentação de cada vez mais gente, gerando autênticas epidemias de obesidade, diabetes e problemas cardíacos.
A nova realidade é epitomada por um fato único e chocante: em todo o mundo, hoje há mais obesos que pessoas abaixo do peso. Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor calórico e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de má nutrição em que cada vez mais pessoas estão ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.(19)
E, no entanto, ninguém pode acusar as grandes corporações de vender algo que não seja alimento. Legumes e frutas são alimento? Açúcar e gordura hidrogenada também. No limite, pode-se dizer que tudo o que é feito com intenção alimentícia é alimento.

* * *

Quem se lembra da mundialmente consagrada Merda d'artista (20), realizada em maio de 1961 pelo artista italiano Piero Manzoni? Se tudo que você sente por essa obra é repugnância, pense novamente. Para além da indiscutível avacalhação artística que ela representa, haverá algo mais singelo, haverá algo mais modesto do que oferecer, convenientemente enlatada, rotulada e assinada, uma pequena porção de sua própria merda? E não é esse um retrato perfeito da civilização industrial: nacos de merda acondicionados em latinhas produzidas em série? Ora, merda por merda, fiquemos com a do artista, que (sobretudo se mantida incólume em seu continente) não nos fará jamais nenhum mal.




Infelizmente, é impossível fazer um elogio semelhante ao Domestikator. Pela reação furiosa à decisão do diretor do Louvre, pelo gênero das acusações que lhe foram feitas, pelo desdém em relação ao possível impacto da obra nos miúdos, pela tentativa de descrevê-la como se ela significasse "tudo e mais um pouco" e, claro, por sua escala monumental, eu não consigo ver nessa instalação mais do que um imenso painel publicitário.

Na escala em que foi produzido (nunca é demais insistir nesse ponto), Domestikator não passa de uma imensa peça de marketing: um outdoor destinado a dar o máximo de visibilidade ao seu autor. A meu ver, é por isso que ele ficou tão zangado com a recusa do Louvre, onde uma exposição não é somente uma consagração artística, mas a conquista de uma valorização financeira definitiva. E por mais que o artista cinicamente denuncie essa recusa como um atentado à liberdade de expressão, sabemos que, no fundo, o único prejuízo foi do seu próprio branding.

Se alguém me perguntasse se Domestikator pode ser considerado tão tóxico quanto o refrigerante que compromete o futuro das crianças da etnia warao (21), eu não saberia responder. Eu realmente não sei. Tudo o que sei é que, nos dois casos, é o Mercado (muito mais do que a Arte ou a Ciência da Nutrição) que está fabricando os corpos e as subjetividades das crianças.

Salò, o último filme de Pasolini, é uma obra de arte pungente, dolorosa e sem dúvida chocante, muito embora não tenha sido feita com a infantil intenção de épater le bourgeois. Domestikator, ao contrário, me parece ser apenas mais um avatar dessa mesma violência tacanha e gratuita que Salò denuncia. Ninguém pode condenar Joep van Lieshout por querer "explicar suas idéias para um público mais amplo"; ainda que sejam idéias medíocres. Mas, ao tentar impor a visão de sua obra por um simples truque de escala, ele se  mostra perigosamente próximo do publicitário que não mede esforços para anunciar seu produto.

* * *

Embora tirando bem menos conclusões do que gostaria, encerro aqui esta série. Não posso, claro, deixar de mencionar outro artigo das organizações Globo, que, mais uma vez, descreve Domestikator como uma "escultura" (sic) que "mostra figura geométrica humana vermelha que aparenta estar fazendo sexo com outra pessoa.(22)"

A imprensa brasileira está num nível sub-rasteiro.



FIM



(18) Até o crime organizado se beneficia com a ampliação do mercado de arte, que multiplica as oportunidades de lavagem de dinheiro.
(19) Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food (The New York Times/Folha de SP)
(20)  Piero Manzoni: Artist’s Shit (1961) (Tate)
(21) Mamadeiras de refrigerante: 'vício' em bebida agrava desnutrição em indígenas (BBC Brasil)
(22)
Excêntrica demais para o Louvre, escultura erótica é exibida no Centro Pompidou (O Globo)



Anteriores:
Arte e liberdade de expressão (primeira parte)
Arte e liberdade de expressão (segunda parte)
Arte e liberdade de expressão (terceira parte)
Arte e liberdade de expressão (quarta parte)

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial

eXTReMe Tracker